o meu colega fernando pessoa
cultivava a heteronimia.
compreendo-o. não é porém
o meu caso.
eu cultivo ser eu, nada mais,
nada menos. partir de mim e
regressar a mim, ou,
como tem acontecido, partir de mim
e não regressar a esse. deixar o mim
de ser o tal. passar o mim a ser
outro. de cada vez que fala o outro
dizer eu. às vezes dizer eu e não saber
qual o mim que fala. eu escolhi
o mais simples: ser,
apenas, quem for.
o meu colega fernando pessoa
escolheu a heteronimia.
será que o compreendo?
quarta-feira
sábado
sexta-feira
há, nas noites de lua cheia,
há, nas noites de lua cheia,
no verão, nas cidades à beira mar,
na embriagada felicidade alheia,
uma dor, um certo azul, um gume,
que tudo faz por se desatar.
depois penso em ti, leila,
e em ti sílvia e helga e mafalda.
passámos ao lado. a verdade, ei-la:
era um rio que corria sem desaguar
era água que não queria ser mar.
quinta-feira
18 de março de 1985
I
desalinhados cabelos
tranquilo rosto
serena bela cabeça
de homem.
o que me dói
por dentro a rói.
II
que fazer agora
quando por dentro
o fogo te consome?
altivo porte
o das águas do teu rosto.
III
dia após dia
noite após noite
me recolhi.
águas semanas meses
não sei quantos.
já podes vir.
IV
a acção das mãos
a finitude das coisas humanas
o amor e o afago
a negra sabedoria
de ser breve
-adeus.
V
antes e depois da ave
de nós
que resta sobre o céu?
VI
por ti troquei o mar.
antes me houvesse perdido
e de mim
jamais soubesses.
VII
navegar
vagar vagar
suspiros em terra
o barco no mar
O peixe prateado
I
imagine-se um peixe simples
tocado pela água e pela luz.
imagine-se o seu movimento
a sua cor a sua voz
“procuro o meu nome o lugar
onde toda a água se desfaz”. é
um peixe tocado pelo espírito
amador da luz em seu corpo
prata.
pelo poema iluminado peixe.
II
tome-se o peixe e sua cor.
prateado.
tome-se o seu voo deslizante.
os olhos, as escamas, ainda a
sua voz.
“solidão é um nome junto a mim.
assalta-me o desejo e eu digo
… a tua boca …”
é agora um peixe descoberto pelo corpo.
insustentável em sua cor negra.
III
uma vez mais olharás o peixe.
não se pode contemplar
tão branca leveza e ficar
impune. beijarás o peixe na boca
colarás a sua respiração à tua. tua
será a morte do peixe, dirás.
“fui beijado pelo mais antigo
secreto e puro oiro.”
uma última vez o verás, agora
em sua cor invisível.
eis-te tocado pelo peixe.
pela água e pela luz.
que dizer de um marinheiro
que dizer de um marinheiro
de um barco fendido pelas águas
fendido pela força da luz?
que dizer sobretudo das águas
de um barco nas zonas feridas da memória
nas horas tempestuosas do sono?
que dizer afinal dos barcos
do peso da noite sobre a proa
do peso dos barcos sobre mim
do peso da dor nestas viagens?
são homens, às vezes dóceis
são homens, às vezes dóceis,
às vezes duros.
são homens, os mesmos, às vezes
incapazes do ódio, às vezes
incapazes do amor. Fracos,
fortes, estremecem, riem,
capazes do deslumbre,
capazes da faca.
são homens, os mesmos, às vezes
choram, às vezes batem, às vezes
amam.
às vezes homens. às vezes tantos
cada um.
Sobre a serena solidão
o teu cheiro continua desconhecido
nesta casa. ainda não gastaste nenhum
sabonete não sujaste
os lençóis os cinzeiros
a loiça.
eu cá continuo mas
vou sendo o ainda sem ti.
não me preocupo porque
a bem da própria harmonia universal
tudo se há-de resolver.
o poema aqui o tens
contudo.
amenas noites de Abril
amenas noites de abril.
o pirilampo veste-se de fósforo intermitente
o sino toca o morcego rodopia
tornado visível pela luz. eu
quereria oferecer-te este precioso momento
a improvável simultaneidade destas coisas.
a poesia é uma arte difícil meu amor.
trata-se de esconder o gato
deixando cuidadosamente a cauda
de fora.
palavra por palavra
como num jogo a dois
introduzo elementos
desvendo segredos
escureço a luz
aclaro sombras
convoco barcos
escolho matizes
digo meu amor em vez de
meu amor. sabes
a poesia é uma arte circular.
trata-se de descobrir pacientemente o gato
escondendo cuidadosamente a cauda.
pedra sobre pedra, de pedra ergui os bancos
pedra sobre pedra, de pedra ergui os bancos,
a mesa, a lareira. a mais rasa laje em frente
ao lugar da porta era o meu lugar na casa.
dali eu contemplava os barcos, o mar, o voo das
aves.
nove meses – outono, inverno, o tempo das flores,
permaneci. três ou quatro meses uma osga
hibernou sobre o meu leito. no quarto em frente
uma cobra vivia tranquila. conheci as pedras
debaixo das quais viviam pequenos escorpiões quase
negro. às vezes levava-lhes insectos moscas mortas.
espalhava grãos pelo pátio e chamava os pássaros.
o mundo não sei. eu renasci.
vens vestida de brando nas águas que desvendo
vens vestida de brando nas águas que desvendo.
trazes uma chama na alma, uma estrela vermelha.
a semente incandescende talhada dentro de ti aberta nos olhos.
por vezes assaltas as praias com teus jogos macabros,
tuas foices, teus perfumes, teus dedos agudos.
eu sou os “teus” jogos macabros e tu,
tu ris-te mansinho num canto tardio.
é quando vens vestida de tempo. eu entranço
uma corda de esperas, tu agachas-te debaixo da garganta
como um cravo negro direito ao coração.
tenho só de merecer-te lentamente
aprender-te sempre até não haver mais tu
nem eu, e nós somos imortais, sabemos.
fico a inventar-te e não habito
o espaço da tua ausência.
vão partindo e chegando comboios através do horizonte.
1981
os dias que passam são rasos e
os dias que passam são rasos e
estéreis.
o inverno arde rigoroso.
não chovem ainda peixes mas água
água líquida.
os corpos refugiam-se para dentro
circunflexos.
os peixes preparam o nascimento
na fertilidade destas chuvas.
os barcos encolhem-se no cais.
os meus dias seguem-se rasos e
estéreis.
passei a usar chapéu ao jantar
passei a usar chapéu ao jantar
desde que te foste embora. acendo
sempre uma vela e falo
comigo.
é difícil ser português e ter corpo.
já o sabia bem o sei agora.
é difícil ter sexo. felizmente
dou-me menos mal. desde que
te foste embora passei a usar chapéu.
ao jantar acendo sempre uma vela.
lágrimas em mares onde as palavras
lágrimas em mares onde as palavras
seriam barcos respirando, eu vi
a sorte dos ventos, a
partida adiada, a lua
amarrada ao porto.
ergui muros tijolo a tijolo de palavras.
dirias: tinhas os ouvidos cimentados.
respiro. a lua na ponta dos dedos
e já as palavras não servem.
diria: os teus primeiros olhos
atravessam-me como uma comoção violenta
e vou à fonte buscar água se queres,
beber sal, encher-me de maresia,
trazer o vento ao nosso suor.
ergui muros de palavras contra as lágrimas.
eram ocas de silêncio as palavras
e o silêncio devia habitar os barcos
lançados pelas tuas palavras em alto mar.
é nas noites em que a lua
se desenlaça dos meus braços que morro,
morro sempre um pouco por isso.
1981
um homem atravessa a europa
um homem atravessa a europa
com o coração aceso nas mãos
atravessa dezembro em direcção ao norte.
foge do amor como de um lugar maldito
que por dentro o invade.
o homem prefere não olhar para trás
para não ver o amor que por dentro
o persegue.
o homem atravessa dezembro
com uma mulher nas mãos vazias
atravessa o norte em direcção ao frio
foge do lugar com uma mulher
que por dentro o invade.
não olha para trás
para não ver a mulher que por dentro
o persegue.
o homem atravessa os lugares
como um maldito que o amor persegue
não olha para trás para não ver o coração
nas mãos da mulher que
o invade.
o homem foge da mulher que ama
para esquecê-la no frio
ao norte de dezembro.
.
era uma cidade ateada pelo branco
era uma cidade ateada pelo branco.
tu praticavas a leveza de ser bela
e jovem e rejuvenescias a cada dia,
dir-se-ia. não se trata aqui poesia.
suponhamos que voavas. voavas
e perdias-te em todas as direcções,
como as crianças. havia nisso alma,
quero dizer, havia nisso um ar, uma
candura, uma certa dose de malícia.
ateavas de brando a cidade ao passar
e praticavas a beleza de ser leve.
praticavas (e isso eu não podia saber)
a inesperada beleza de ser breve.
era uma cidade ateada pelo branco
era uma cidade ateada pelo branco.
tu praticavas a leveza de ser bela
e jovem e rejuvenescias a cada dia,
dir-se-ia. não se trata aqui poesia.
suponhamos que voavas. voavas
e perdias-te em todas as direcções,
como as crianças. havia nisso alma,
quero dizer, havia nisso um ar, uma
candura, uma certa dose de malícia.
ateavas de brando a cidade ao passar
e praticavas a beleza de ser leve.
praticavas (e isso eu não podia saber)
a inesperada beleza de ser breve.
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